Por Josias de Souza
Nem Dilma Rousseff nem José Serra. No último debate presidencial da temporada de 2010, a grande atração foram os eleitores indecisos. Escalados como inquiridores, eles esfregaram no nariz dos candidatos um país que ambos se abstiveram de debater nos quatro meses de campanha.
“Já fui assaltada com uma arma na cabeça, na porta da minha casa”, a costureira Vera Lúcia disparou. O bandido queria a bolsa. Ela não entregou. Livrou-se do tiro porque a gritaria de um irmão afugentou o bandido. Como resolver o problema da segurança?
O convívio de Vera com a morte converteu numa espécie de abstração o Ministério da Segurança de Serra. A idéia de Dilma de estimular o policiamento comunitário soou etérea.
Na arena montada pela Globo, 80 eleitores indecisos envolveram os candidatos num semicírculo de realidade. O resultado foi constrangedor. Percebeu-se que as duas campanhas giravam como parafusos espanados ao redor do oco do vazio.
Na publicidade eleitoral, a miséria foi útil para que os marqueteiros fabricassem o país vago e imaginário que associaram a Dilma e Serra. Na rotina de Madalena de Fátima, porém, a impaciência prevalece sobre a ilusão. Depois de se apresentar, a cabeleireira mineira demarcou as diferenças.
“Na propaganda dos candidatos, vimos uma saúde pública maravilhosa”, ela realçou. Fora do ambiente edulcorado do vídeo, “tem gente morrendo”. Ela pintou o quadro: hospitais cheios, falta de médicos, gente convertida em “lixo”... Até quando seremos tratados “como animais”?
Serra há de tê-la deixado mais desalentada: “Nunca vai chegar à perfeição. A batalha tem que ser para que hoje seja melhor do que ontem e amanhã melhor do que hoje”. Dilma tampouco há de tê-la reanimado: “De fato, temos um problema sério de qualidade da saúde no Brasil. Se a gente não reconhecer, não melhora”.
Diante de Madalena estavam 16 anos de poder –oito de FHC, oito de Lula. E a eleitora, uma das que o Ibope selecionou por ser indecisa, não recebeu dos candidatos senão respostas duvidosas.
Trazidos das cinco regiões do país, os perguntadores estavam no Rio desde quarta-feira (27). A Globo sonegou-lhes o acesso à internet e à televisão. Isolados num hotel, formularam cinco perguntas cada um. Apenas doze foram lidas no ar, mediante seleção aleatória.
Numa das vezes em que levou o dedo indicador à tela do computador, Dilma “escolheu” a pergunta de Melissa Bonavita, uma jovem carioca, operadora de telemarketing. As palavras dela como que espalharam coliformes fecais pelo cenário asséptico do estúdio da Globo.
“Moro num bairro onde tem um valão nas proximidades”, ela contou. Quando chove, o valão “transborda”, inundando de “esgoto” as ruas. O que será feito?
Dilma: “Vou triplicar os investimentos em saneamento. [...] A meta é zerar o déficit de saneamento. É uma vergonha termos esse problema no século 21”. Cifras? Não mencionou. Tipo de metas? Não especificou. Prazos? Nada.
Serra: “Deve multiplicar, sim, os investimentos. Mas o governo federal duplicou os impostos em saneamento. Isso tira R$ 2 bilhões das companhias estaduais por ano”. A dupla mencionou também a necessidade de combater as enchentes, cada um à sua maneira.
Não foi possível saber se Melissa decidiu em quem votar. Mas voltou para casa com uma sólida certeza: o “valão” que verte esgoto na sua rua terá vida longa. Advogado de Brasília, selecionado pela pressão do dedo de Serra contra o computador, Lucas Andrade tratou de outro tipo de lama: a corrupção.
Espremeu nos 30 segundos que lhe foram reservados tudo o que precisava ser dito sobre o tema: as fortunas amealhadas pelos políticos, o desinteresse midiático que se segue às manchetes enfezadas, a impunidade acima de certo nível de renda...
Serra e Dilma fustigaram-se mutuamente. Ele disse que a corrupção “chegou a níveis insuportáveis”. Sem mencionar Erenice Guerra, afirmou que o governante precisa “dar o exemplo, escolhendo bem as suas equipes”.
Ela levou à roda o caso dos Sanguessugas, um escândalo que tem raízes na gestão do rival no Ministério da Saúde, sob FHC. Na tréplica, Serra atacou de aloprados: “R$ 1,7 milhão que PF apreendeu. Ninguém foi condenado. Um mal exemplo”. Sem querer, o advogado Lucas transformou um pedaço do debate numa gincana do "sujo" contra a "mal lavada".
O programa foi interessante pelas perguntas, não pelas respostas. Os comitês de campanha têm dificuldade para indentificar o eleitor indeciso. Quem são eles? Como entrar na cabeça deles? Como conquistar o voto deles?
Forças ocultas da eleição, eles ainda somam, segundo o Datafolha e o Ibope, 4% do eleitorado. Algo como 5 milhões de votos. Representados pelo grupo de 80 reunido no estúdio da Globo, eles mostraram a sua cara.
Seres impalpáveis, eles falam da desgraça nacional com conhecimento de causa. A felicidade deles é uma virtude fugitiva. Correm cotidianamente das armadilhas que o descaso do Estado acomoda no caminho.
Ouvindo-os, percebeu-se o quanto Dilma e Serra desperdiçaram o tempo de campanha. Enquanto discutiam religião e espalhavam cascas de banana na internet, o eleitor inceciso levava o revólver na cara, assistia à morte no corredor do hospital, sujava o sapato no esgoto da rua, indignava-se com o enriquecimento sem causa.
Diante da incógnita escondida atrás das duas “opções”, o indeciso revelou-se o eleitor mais sábio. As campanhas lhes venderam uma Bélgica. Mas eles sabem que, depois de 16 anos de tucanos e petistas, ainda vivem no Brasil.
Antonioo Lacerda/Efe |
“Já fui assaltada com uma arma na cabeça, na porta da minha casa”, a costureira Vera Lúcia disparou. O bandido queria a bolsa. Ela não entregou. Livrou-se do tiro porque a gritaria de um irmão afugentou o bandido. Como resolver o problema da segurança?
O convívio de Vera com a morte converteu numa espécie de abstração o Ministério da Segurança de Serra. A idéia de Dilma de estimular o policiamento comunitário soou etérea.
Na arena montada pela Globo, 80 eleitores indecisos envolveram os candidatos num semicírculo de realidade. O resultado foi constrangedor. Percebeu-se que as duas campanhas giravam como parafusos espanados ao redor do oco do vazio.
Na publicidade eleitoral, a miséria foi útil para que os marqueteiros fabricassem o país vago e imaginário que associaram a Dilma e Serra. Na rotina de Madalena de Fátima, porém, a impaciência prevalece sobre a ilusão. Depois de se apresentar, a cabeleireira mineira demarcou as diferenças.
“Na propaganda dos candidatos, vimos uma saúde pública maravilhosa”, ela realçou. Fora do ambiente edulcorado do vídeo, “tem gente morrendo”. Ela pintou o quadro: hospitais cheios, falta de médicos, gente convertida em “lixo”... Até quando seremos tratados “como animais”?
Serra há de tê-la deixado mais desalentada: “Nunca vai chegar à perfeição. A batalha tem que ser para que hoje seja melhor do que ontem e amanhã melhor do que hoje”. Dilma tampouco há de tê-la reanimado: “De fato, temos um problema sério de qualidade da saúde no Brasil. Se a gente não reconhecer, não melhora”.
Diante de Madalena estavam 16 anos de poder –oito de FHC, oito de Lula. E a eleitora, uma das que o Ibope selecionou por ser indecisa, não recebeu dos candidatos senão respostas duvidosas.
Trazidos das cinco regiões do país, os perguntadores estavam no Rio desde quarta-feira (27). A Globo sonegou-lhes o acesso à internet e à televisão. Isolados num hotel, formularam cinco perguntas cada um. Apenas doze foram lidas no ar, mediante seleção aleatória.
Numa das vezes em que levou o dedo indicador à tela do computador, Dilma “escolheu” a pergunta de Melissa Bonavita, uma jovem carioca, operadora de telemarketing. As palavras dela como que espalharam coliformes fecais pelo cenário asséptico do estúdio da Globo.
“Moro num bairro onde tem um valão nas proximidades”, ela contou. Quando chove, o valão “transborda”, inundando de “esgoto” as ruas. O que será feito?
Dilma: “Vou triplicar os investimentos em saneamento. [...] A meta é zerar o déficit de saneamento. É uma vergonha termos esse problema no século 21”. Cifras? Não mencionou. Tipo de metas? Não especificou. Prazos? Nada.
Serra: “Deve multiplicar, sim, os investimentos. Mas o governo federal duplicou os impostos em saneamento. Isso tira R$ 2 bilhões das companhias estaduais por ano”. A dupla mencionou também a necessidade de combater as enchentes, cada um à sua maneira.
Não foi possível saber se Melissa decidiu em quem votar. Mas voltou para casa com uma sólida certeza: o “valão” que verte esgoto na sua rua terá vida longa. Advogado de Brasília, selecionado pela pressão do dedo de Serra contra o computador, Lucas Andrade tratou de outro tipo de lama: a corrupção.
Espremeu nos 30 segundos que lhe foram reservados tudo o que precisava ser dito sobre o tema: as fortunas amealhadas pelos políticos, o desinteresse midiático que se segue às manchetes enfezadas, a impunidade acima de certo nível de renda...
Serra e Dilma fustigaram-se mutuamente. Ele disse que a corrupção “chegou a níveis insuportáveis”. Sem mencionar Erenice Guerra, afirmou que o governante precisa “dar o exemplo, escolhendo bem as suas equipes”.
Ela levou à roda o caso dos Sanguessugas, um escândalo que tem raízes na gestão do rival no Ministério da Saúde, sob FHC. Na tréplica, Serra atacou de aloprados: “R$ 1,7 milhão que PF apreendeu. Ninguém foi condenado. Um mal exemplo”. Sem querer, o advogado Lucas transformou um pedaço do debate numa gincana do "sujo" contra a "mal lavada".
O programa foi interessante pelas perguntas, não pelas respostas. Os comitês de campanha têm dificuldade para indentificar o eleitor indeciso. Quem são eles? Como entrar na cabeça deles? Como conquistar o voto deles?
Forças ocultas da eleição, eles ainda somam, segundo o Datafolha e o Ibope, 4% do eleitorado. Algo como 5 milhões de votos. Representados pelo grupo de 80 reunido no estúdio da Globo, eles mostraram a sua cara.
Seres impalpáveis, eles falam da desgraça nacional com conhecimento de causa. A felicidade deles é uma virtude fugitiva. Correm cotidianamente das armadilhas que o descaso do Estado acomoda no caminho.
Ouvindo-os, percebeu-se o quanto Dilma e Serra desperdiçaram o tempo de campanha. Enquanto discutiam religião e espalhavam cascas de banana na internet, o eleitor inceciso levava o revólver na cara, assistia à morte no corredor do hospital, sujava o sapato no esgoto da rua, indignava-se com o enriquecimento sem causa.
Diante da incógnita escondida atrás das duas “opções”, o indeciso revelou-se o eleitor mais sábio. As campanhas lhes venderam uma Bélgica. Mas eles sabem que, depois de 16 anos de tucanos e petistas, ainda vivem no Brasil.
Comentários